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Como foi o início dessa já longa carreira ao serviço do samba?
Tudo isso começou na verdade em Moçambique quando era bem pequeno e tive o privilégio de tomar contacto com as batucadas e marimbas africanas, que despertaram em mim essa vocação.
Ainda no meu país de origem tive também contacto com a música de Martinho da Vila, sendo essa a minha primeira referência no samba e, que me fez desde logo sentir necessidade de promover o contacto com certos instrumentos de percussão, nomeadamente com o pandeiro e com a “cuíca”, que muitos julgam ser um instrumento nascido do samba, mas que na verdade é oriundo de África.
Depois com a vinda para Portugal em 1977, deu-se o ingresso natural no Samba LêLê, formado desde 1973, já que fui morar em Coimbra, onde tive contacto imediato com esse novo mundo musical.
A partir daí as coisas foram-se desenrolando de forma natural, tanto no seio do grupo, como no contacto com uma escola de samba que estava em formação (Sócios da Mangueira - Mealhada), onde juntamente com outros integrantes do Samba LêLê de então (1978), fui ensinar a forma de tocar percussão de samba.
Depois vieram as outras escolas.
Sendo a Charanguinha a escola do teu coração relembra-nos como foram os primeiros passos na escola já com a tua influência?
Bem, antes tenho de referir que são duas as escolas de coração e a primeira é a Beija-Flor, tendo a Charanguinha vindo ocupar a outra metade.
Mas na verdade, várias foram as escolas onde estive directamente envolvido ao nível do ensino do samba, destacando-se os Sócios da Mangueira (Mealhada), Costa de Prata (Ovar), Vai Quem Quer (Estarreja), Batuque (Mealhada) e outras mais, pois na verdade procuro manter uma relação aberta com todas elas.
Quanto à Charanguinha, as coisas desde o primeiro dia foram fluindo naturalmente, pois se já antes tinha sido o mentor da aparição do samba enredo no Carnaval de Ovar (ainda na Costa de Prata, pois naquela altura apenas se batucava na avenida), depois do primeiro desfile com a Charanguinha, acompanhado de outros dois amigos (Geraldo e Betinho Brasileiro), assumi a área da composição, harmonia e direcção de bateria, com o assentimento de toda a direcção e do Presidente João Fernando Costa, situação que ocorre até hoje após 21 anos de permanência na escola.
Devo dizer que efectivamente o João Fernando Costa, foi o principal responsável pelo meu ingresso na Charanguinha.
Momentos mais felizes até hoje?
Falando apenas em samba, posso dizer que foram bastantes, pois na verdade ao longo dos tempos, desde que entrei para o Samba LêLê e depois no universo das Escolas de Samba em Portugal eles vêm-se multiplicando.
Como pai, a alegria imensa de ver singrar nesse mundo um filho que bebeu na fonte do sangue de batuqueiro.
Ainda os momentos em que vi o meu trabalho em prol do samba ser reconhecido pela nata do Samba Carioca, depois quando fui entrevistado pela GNT num programa que focava apenas o Samba e os seus operários e, finalmente, no apadrinhamento pelo Grupo Fundo de Quintal e pela Beth Carvalho.
Mas como sambista que sou, esses momentos felizes irão com certeza continuar, enquanto puder cantar, tocar e escutar samba.
Momentos mais difíceis?
Olha, todos aqueles em que fui perdendo amigos nesse caminho. Não por falta de amizade, mas pelo desaparecimento dos mesmos.
De facto, comparado com isso, perder este ou aquele Carnaval é até uma alegria.
Como tens visto a evolução das escolas de samba em Portugal?
De forma positiva.
Existem escolas que vão demorar mais a chegar lá e outras que podem até nem chegar, mas de facto todas elas têm evoluído positivamente e algumas bem rápido até, o que é normal pois agora algumas coisas estão bem mais fáceis do que era antigamente, mas essa é também a ordem natural não é mesmo?
Como e quando surgiu a ideia do grupo SAMBA LÊLÊ?
Bem como algumas pessoas sabem, o Samba LêLê, surgiu em 1973, de uma vontade no seio de uma pequena comunidade de estudantes brasileiros da Universidade de Coimbra, que se juntaram e formaram uma banda que contava com mais de 20 integrantes em palco (assim tipo banda de Ipanema para quem conhece), onde existia toda a percussão de samba e também a parte harmónica completa (sopros, cordas, teclas).
Desde 1973, o grupo passou pelos maiores palcos do país em Finais de Ano, Carnavais e outros eventos.
Mas todo esse historial pode ser consultado através do nosso site (clicar)
Sei que tens amizades bem profundas com personagens do samba no Brasil. Eles têm sido para ti ao longo dos anos uma fonte de inspiração, ensinamentos e de modelos?
É claro que sim. Todos eles. Fundo de Quintal, Martinho, Zeca, Beth Carvalho, Wanderson Martins, Arlindo Cruz, Sombrinha, Darcy da Mangueira, Alcione, Neguinho da Beija-Flor, Luís Carlos da Vila (recentemente desaparecido) e muitos outros. Cada um à sua maneira me inspirou e ajudou a modelar.
Como tens conseguido conciliar toda essa actividade de compor samba, ser intérprete, dirigir a bateria da Charanguinha e ainda mais o Samba LêLê?
Na verdade até que não tem sido difícil, pois quando se gosta daquilo que se faz as coisas acontecem naturalmente e sempre se dá um jeito. É claro que a parte familiar é sempre afectada, mas aí sempre tive a ajuda e compreensão de uma mulher maravilhosa, mãe dos meus filhos e companheira de todo este tempo. Aqui também quero deixar-lhe a minha homenagem e reconhecimento.
A parte de composição por exemplo é até mais fácil, pois isso vem de dentro e não tem hora nem lugar para acontecer. Ainda no sábado passado fui até ao computador e o samba de enredo da Charanguinha para 2010 veio no espaço de uma hora, depois de 2 semanas sem surgir nada. São coisas que no geral não se controlam. Quando a inspiração vem de dentro é só abrir a porta na hora certa. Não adianta forçar.
Que gostarias de ver acontecer com o samba em Portugal e em particular com as escolas de samba?
Bom, antes de mais que as escolas evoluam cada vez mais e que aquelas que são agora mais evoluídas não escarneçam das que estão em patamar inferior, pois na verdade a perfeição não existe e nada é eterno. De repente o tombo vem para qualquer uma.
Penso que aquela ideia da Liga das Escolas de Samba em Portugal deveria vingar pois isso é sempre bom e pode fazer mais pelas escolas aqui, que sempre vão lutando com bastantes dificuldades no seu dia-a-dia.
Concordas com o ENCONTRO NACIONAL de SAMBA (Estarreja) a realizar-se nos moldes em que se realiza e com os critérios de avaliação em que se baseia?
No que toca à avaliação até nem coloco problemas, sabendo-se que isso é sempre discutível e muitas vezes o consenso é difícil. Agora é claro que, colocando-se elementos das próprias escolas a votar, vai sair “marmelada” aqui ou ali em algum critério. Penso que deveria escolher-se um júri alheio às escolas, mas bem conhecedor dos critérios em julgamento. Quanto ao próprio conceito do evento, estou completamente contra e explico:
Não se pode chamar um evento de “Encontro Nacional de Samba”, quando a coisa não é Nacional, pois não basta convidar escolas de samba vencedoras dos Carnavais das respectivas localidades, uma vez que há Carnavais onde não existe concurso de avaliação.
Aí já fica difícil explicar porque se convidou uma escola e não outra. Para isso muitas mais teriam de ser convidadas, ou mesmo todas.
No entanto, compreendo que devido a questões de logística e custos a coisa ficaria incomportável. Então acho que o conceito deste evento deveria ser reformulado.
Olhando para trás e recordando todo o teu trabalho o que te deixa mais orgulhoso?
Para não repetir algumas que já mencionei, posso dizer que uma das coisas de que mais me orgulho é de ver despontar cada vez mais nessa rapaziada mais nova, o gosto não só pela escola de samba, mas também pelos pagodes (não como estilo musical, mas como encontros onde se canta e toca samba), pois na verdade através do trabalho desenvolvido com o Samba LêLê e não só, posso dizer que ajudei a criar esse movimento que hoje está aí por todo o lado.
Que recados gostarias de deixar para quem faz parte da comunidade de sambistas e "sambeiros"do nosso país?
Bem, antes de mais vamos separar sambista de “sambeiro”. Na concepção dos antigos no Rio e falando de escolas de Samba, sambista é que aquele ou aquela que vem no chão seja no pé, seja na mão. “Sambeiros” por sua vez são alguns daqueles que vêm em cima dos carros e muitas vezes nem sequer sabem o samba da escola. Mas com certeza poderão existir outras concepções. No entanto só posso deixar um único recado a todos:
“NÃO DEIXEM O SAMBA MORRER”.
Aquele abraço a toda a comunidade do samba em Portugal.
Xando
Setembro/2009